A antologia Haicai do Brasil (Edições de Janeiro, 2014), organizada e ilustrada por Adriana Calcanhotto, é um apanhado de vários autores sobre a poesia japonesa no Brasil. Traz desde haicais históricos (de Monteiro Lobato e Afrânio Peixoto) a poemas síntese criados por Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana. A ideia geral da antologia, de acordo com o posfácio assinado por Eduardo Leite, é aproximar o haicai da poesia brasileira, mais especificamente, da poesia modernista.
O haicai é uma forma poética japonesa e seus fundamentos foram criados por Matsuo Bashô, no século XVII. Apesar de ser uma forma japonesa, o haicai tem muitos pontos de contato com o ocidente. Seu ritmo é familiar aos ritmos populares ocidentais. Usa versos com cinco ou sete sílabas, como a nossa poesia popular. A preferência pelo vocabulário simplificado, temas cotidianos, síntese de imagens contrastantes e registro do imediato conflui com os ideais do movimento modernista brasileiro. O papa do modernismo, Oswald de Andrade, criou o poema-pílula, espécie de epigrama que tem como base o humor. Diferente do haicai, que é o registro de instantâneos da natureza, os poemas modernistas buscam o testemunho da modernidade. Incorporam a paisagem das cidades no início do século XX, recriando cenas em que as novas tecnologias de então – o automóvel, bonde, o trem e o cinema – são protagonistas.
O haicai não entrou na ordem do dia com os modernistas. Um dos primeiros poetas brasileiros a publicar a poesia japonesa foi Monteiro Lobato, num artigo escrito em 1906. Afrânio Peixoto, em 1919, ampliou a divulgação, em outro artigo. Uma diferença gritante da poesia ocidental é que o haicai não usa rimas. Afrânio foi fiel a esta regra. Outros poetas brasileiros, como Guilherme de Almeida, não puderam se abster de usá-las. Além de rima, Guilherme também usava título, outro recurso inexistente no haicai:
Caridade
Desfolha-se a rosa:
Parece até que floresce
O chão cor-de-rosa.
Tanto o uso de rimas quanto de título enfraquecem o tom coloquial do haicai. O título reduz o efeito surpresa, direcionando o sentido do poema. Uma das forças do haicai é a ambigüidade, em que interpretação pode caminhar para vários sentidos. O haicai tem como tema não só a natureza, mas a transformação que o ambiente sofre durante as mudanças de estação.
A antologia de Calcanhotto lista vários poemas originalmente não escritos na forma de haicai. É o caso desta anotação de Manuel Bandeira:
Água de rosas
Ácido bórico
Essência de mel da Inglaterra
Ao encontrar a anotação no diário de sua mãe, o poeta logo descobriu ali um poema. Embora seja um terceto, não é nem haicai livre, o haicai adaptado no Ocidente, com título, rima, sem referência à estação do ano.
Outro exemplo de não haicai incluído na antologia é Drummond:
O pintor ao meu lado
Reclama:
Quando serei falsificado?
O terceto de Erico Veríssimo guarda alguma aproximação com o haicai, por citar um tema relacionado à natureza:
Gota de orvalho
Na carola de um lírio:
Joia do tempo.
Mais autênticos, os poemas de Jorge Fonseca Júnior, convencido pelo poeta japonês Masuda Goga a seguir as regras do haicai tradicional:
Escurece rápido:
Insistente, a corruíra
Cisca no quintal.
Millôr Fernandes retornou à trilha dos modernistas, reintroduzindo a rima e o humor:
Na poça da lua
O vira-lata
Lambe a lua
Ledo Ivo é pouco conhecido por ter se aventurado nas sendas do haicai, mas sua elegância e sobriedade seria acolhida pelos japoneses:
O lago habitado
Na água trêmula
Freme a pálida
anêmona
O poema japonês muito encantou aos concretistas, que retomam as ideias modernistas: valorização da fragmentação, da montagem, da síntese e da visualidade. Décio Pignatari aproxima o clássico haicai da rã, de Bashô, do poema visual concretista:
VELHA
LAGOA
UMA RÃ
MERG ULHA
UMA RÃ
ÁGUAÁGUA
Eunice Arruda e Teruko Oda são duas poetas excepcionais a seguirem a trilha do haicai tradicional. Pena que a antologia traga apenas uma amostra de cada. Subentende-se que a organização privilegiou os autores mais conhecidos:
Por entre as flores
Procurando pela mãe
Dia de Finados
(Eunice Arruda)
Sequência de clics –
Um turista japonês
Ao redor do ipê.
(Teruko Oda)
Seguindo a trilha dos concretos, Leminski teria sido o mais influente poeta a divulgar o haicai no Brasil. Como Milllôr Fernandes, Leminski opta, na maior parte de suas composições, pelo humor:
A noite – enorme
Tudo dorme
Menos teu nome
Os insights de Alice Ruiz também merecem destaque na antologia:
Varal vazio
Um só fio
Lua ao meio
Outro poeta, ou personagem, Satori Uso (na verdade, criação do poeta Rodrigo Garcia Lopes) merece destaque por incluir nos poemas a justaposição de imagens (os poemas são diagramados na vertical, simulando a escrita ideogramática):
Um saco de pães
Alguém remexendo
Primeiros ruídos da chuva
A antologia, como um todo, representa a corrente do haicai livre, entremeando tercetos de poetas brasileiros famosos como haicai. Vale como amostra do haicai praticado no Brasil, e menos como fonte de estudo. Mas é um exemplo típico da literatura brasileira dos últimos anos, que graças ao efeito Flip equipara arte a entretenimento.
HAICAI DO BRASIL | Adriana Calcanhotto (org.)
Editora: Edições de Janeiro;
Quanto: R$ 33,66 (168 páginas);
Lançamento: Julho, 2014.