Jovens brasileiros aprendem música tradicional japonesa colocando mais aji nas partituras. É o tempero brasileiro no espírito japonês, despertando a ilimitada capacidade humana de se reinventar.
Por Patrícia Kamis
– Se importa se eu ouvir música? – pergunta Oshima, um dos personagens do romance Kafka à Beira-Mar, do contemporâneo romancista japonês Haruki Murakami. A pergunta é dirigida para o protagonista Kafka, que responde “Não”, e Oshima liga o tocador de CDs, revelando a Sonata em Ré Maior, de Schubert. Inicia-se um belo diálogo entre eles sobre executar as sonatas desse compositor com perfeição. Oshima diz a Kafka que não existe um único pianista que o tenha conseguido. O motivo é porque a própria composição é imperfeita. No entanto, ele ressalta: – Certos tipos de imperfeição tornam uma obra potencialmente mais atraente por causa da imperfeição.
Da mesma forma que Murakami se interessa pela música clássica ocidental, a música tradicional japonesa encontra jovens apaixonados pela sua imperfeição. Henrique Elias Sulzbacher, jovem músico gaúcho de Santa Cruz do Sul e fabricante da tradicional flauta de bambu japonesa, o shakuhachi, é um deles. Seu primeiro contato com o instrumento ocorreu na tentativa de fabricar seu próprio shakuhachi. Depois de quatro anos de namoro com o instrumento, o músico diz que o som e as sensações que ele e o soprar causavam, deixando o corpo mais leve, a mente arejada e o espírito em paz, e a curiosidade e necessidade de alguma evolução, motivaram-no a fazer um primeiro investimento. Assim, através do site de Monty Levenson, Henrique importou livros sobre suas peças tradicionais, seu sistema de notação exclusivo, a história e filosofia do shakuhachi e informações sobre sua feitura. Esse aprofundamento capturou-o e veio ao encontro com o modo como Henrique sempre se relacionou com a música, que é o de valorizar o gosto pela pureza dos sons e de como eles agem na alma.
Em Curitiba, encontramos Sérgio Vinícius Monfernatti, natural de Cornélio Procópio, amante da música tradicional japonesa, que se destaca pela sua habilidade com o shamisen (instrumento musical japonês de três cordas). Inspirado pela professora Lina Abe, Vinícius foi cativado pelo exotismo do shamisen, perceptíveis em sua construção e técnica de execução, timbre, formato e repertório. Com um esforço nipônico para seguir fielmente a sonoridade original do instrumento, o jovem músico hoje é respeitado por muitos nikkeis, muitos dos quais, ao ouvi-lo tocando, afirmaram que ele possui aji (tempero) como um verdadeiro japonês. Apesar de atualmente o som do shamisen ser mesclado com música pop, Vinícius diz que sua motivação em aprendê-lo foi a vontade de divulgar seu repertório tradicional. O músico concorda que às vezes a quebra da tradição ajuda a popularizar o instrumento, mas considera mais interessante quando isso serve como porta de entrada para a música tradicional, em uma tentativa de preparar os ouvidos ocidentais para a genuína música oriental.
TRANSFORMAÇÕES
Henrique é um entusiasta divulgador da música do shakuhachi na sua forma inata. Em sua opinião, sua mescla com a música contemporânea pode levar a um afastamento sem retorno à essência sonora do instrumento. No caso específico do shakuhachi, sua essência remete ao zen-budismo, que o utilizava como prática meditativa. A dedicação ao estudo da sonoridade tradicional do instrumento, devido às suas raízes na meditação, levou o músico a uma transformação musical e pessoal: a música mudou, ganhou sutileza, força. Aprendeu a ser ora borboleta, ora furacão. Internamente, em seu ser, com certeza uma alquimia ocorreu e segue ocorrendo, tanto devido ao estudo da música do instrumento quanto ao estudo da construção dele. Esses dois aspectos se entrelaçam de forma bela e perfeita. Cada movimento solitário nessas disciplinas leva-o para dentro do seu ser e sempre encontra algum lugarzinho inexplorado a ser lapidado, ou alguma lição a ser levada pela vida.
Vinícius também menciona uma experiência de transformação, não apenas no que tange à música, mas pelo seu enlace com a cultura japonesa em geral. Como nasceu no norte do Paraná, sua mãe sempre teve amigas nikkeis. Com o pequeno Vinícius no colo, ela entoava a canção infantil Kutsu ga naru (algo como o som dos sapatos), aprendida com a vizinha japonesa. Sua afinidade com a cultura, portanto, o segue desde a infância. Hoje, além de tocar o shamisen, o shinobue (flauta transversal japonesa), o taiko (tambor japonês), e o próprio shakuhachi, Vinícius é professor de língua japonesa e praticante de cerimônia do chá há mais de quatro anos.
A atração e o sólido vínculo desses jovens ocidentais com a música tradicional japonesa são algo tão interessante quanto procurar uma execução perfeita da Sonata em Ré Maior, de Schubert. O personagem de Murakami nos ensina que se as sonatas fossem executadas apenas conforme a partitura não seriam arte e não nos emocionaríamos. Seria demasiadamente monótono ter apenas músicos japoneses tocando sua música tradicional e jovens ocidentais tocando música contemporânea. É o tempero brasileiro no espírito japonês, fazendo soprar as cordas de uma consciência artística adormecida e despertando atenção para a ilimitada capacidade humana de se reinventar.
Enquanto finalizo este artigo, sou surpreendida pela notícia de um terremoto devastador no Japão. Lembro-me das palavras do músico Henrique, quando menciona que uma das grandes lições aprendidas com o shakuhachi é o MA, o vazio, o silêncio que permite que os sons do ambiente permeiem as peças. Quero crer que tais tragédias naturais sejam dessa qualidade de MA, as quais, ainda que calem a voz de um povo por um instante, constituam apenas um breve espaço entre as notas. Um vazio necessário para permitir que a música japonesa seja de uma beleza ainda mais forte e significativa. Meus votos de coragem e garra para que o povo japonês reerga-se, reconstrua-se, reinvente-se uma vez mais.
Patrícia Kamis é atriz e dramaturga.