25 ARTES | AS CASAS JAPONESAS

Por Okawa Ryuko
As casas tradicionais japonesas eram comumente construídas em madeira. Por um lado, abundava a madeira de boa qualidade e, por outro, o recurso a ela permitia uma melhor ventilação e penetração da luz, o que convinha ao tipo de clima japonês. O problema era a suscetibilidade ao fogo, mas os edifícios em madeira compensavam com a sua resistência aos terremotos, tão frequentes no Japão, e por serem de fácil construção e demolição. O famoso Horyuji, uma estrutura de madeira do séc. VII, ainda resiste, o que demonstra a excelência da madeira como material de construção. A partir do século passado, o número de casas de cimento aumentou, mas um toque de madeira é algo de que os japoneses são incapazes de prescindir. A maior parte dos interiores das casas de cimento continua a ser de madeira, nem que se trate apenas de painéis de madeira. Existem certas partes das casas tradicionais a que podemos chamar paredes, komai-kabe. Consistem em camadas de argila, por si só decorativas e revestidas de finas tábuas de madeira nos locais expostos à chuva. O bambu, que além de belo é extremamente robusto e elástico, está presente nas cercas e nos tetos e serve ainda como suporte para as paredes de argila. São também utilizados como caleiras, beirais de telhado ou canos de água, visto serem ocos por dentro. A pedra, devido aos frequentes tremores de terra, não é utilizada como material de construção, mas surge algumas vezes como degraus ligando o edifício e o jardim.
Pedras encaminhando-se para a sukiya (casa de chá) de Senkeien, Yokohama. (Imagem: Japão Japan).
Pedras encaminhando-se para a sukiya (casa de chá) de Senkeien, Yokohama. (Imagem: Japão Japan).
A preocupação principal na construção da habitação japonesa tradicional é a não delimitação rigorosa do espaço interior e exterior:
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Procura-se a mais profunda inserção do edifício no espaço circundante, reduzir ao máximo a interferência na natureza. Cercazinhas leves de bambu, portas corrediças, jardins exteriores e interiores…
Cerca de bambu, pedras no caminho, telhado de colmo - a natureza portas adentro.
Cerca de bambu, pedras no caminho, telhado de colmo – a natureza portas adentro.
Os nakaniwa (jardins interiores) estendem em direção ao exterior os espaços interiores. De modo a impedir a obstrução da luz ou do ar, nos nakaniwa não se podem plantar árvores de grande porte ou em grande número. A escolha das plantas tem de ser cuidadosa. Geralmente, incluem uma lanterna de pedra ou uma bacia de pedra cuja função não é meramente decorativa, se o estilo for puro.
Sukiya (casa de chá) do Daidokuji: shoji velando um nakaniwa (jardim interior) com lanterna e bacia de pedra.
Sukiya (casa de chá) do Daidokuji: shoji velando um nakaniwa (jardim interior) com lanterna e bacia de pedra.
Basta recordarmos as casas árabes, rodeadas de muros altos e espessos, abrindo-se apenas para o seu próprio interior, resguardando-se do exterior, para se perceber o modo diverso dos japoneses verem o mundo e nele habitarem. A privacidade, no Japão, não é conseguida através da construção de muros, de portas com fechaduras, de janelas com vidro e persianas. É conseguida através de um comportamento formal, do respeito pelo próximo e pelas regras de educação. A parte de uma construção japonesa que mais chama a atenção é, sem dúvida, o telhado, ou os múltiplos telhados. Bem característica é a convivência de vários estilos de telhado (hisashi) no mesmo edifício. Seja qual for o tipo de telhado – kiri-zuma, yose-mune, iri-moya – apresentam beirais baixos e longos, de modo a resguardar as habitações das grandes chuvadas. A possibilidade de utilizar vários telhados diferentes facilita também a adição de novas assoalhadas.
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Os telhados costumavam ser de palha e de caules de planta até à Idade Média, quando começaram a ser também utilizados o cipreste e o cedro, técnica ainda hoje visível em templos e casas rurais. Por volta do séc. VI d.C., a arquitetura budista – proveniente da China – trouxe consigo as telhas, mas passaram-se milénios até serem utilizadas em residências. Seja como for, a área ocupada pelos telhados é imensa e reina sempre uma sombra densa sob o alpendre. Como notou Junichiro Tanizaki, o grande escritor japonês: “Se o telhado japonês é um guarda-sol, o ocidental é apenas um chapéu. Melhor, como num boné, os rebordos estão reduzidos a tão pouca coisa que os raios diretos do sol podem incidir nas paredes até ao nível do telhado.” Ainda por cima, além do longo telhado, a existência de um grande beiral e de uma varanda, já para não falar do filtro dos shoji (divisórias com aberturas cobertas com papel de arroz) permitem que apenas um pálido reflexo da luz do jardim penetre no interior. Tal espelha bem o gosto japonês pela sombra, pelos ambientes velados e a sua profunda repulsa pelo brilho vulgar. A penumbra, tênue e incerta, os japoneses sabem-no bem, tem um encanto sutil e discreto: “Não é que tenhamos uma reserva a priori relativamente a tudo o que brilha, mas, a um brilho superficial e gelado, preferimos sempre os reflexos profundos, um pouco velados.” (Junichiro Tanizaki) Recordemos, a propósito, a diferença entre o papel de arroz, com a sua leve rugosidade, as suas nuances de cor, as suas zonas opacas e o nosso papel, que rebrilha com um branco metálico e sem mácula, como que traindo essa obsessão, tão ocidental e por vezes tão perigosa, pela “pureza”.
Casa camponesa no distrito de Chabu, em estilo tradicional.
Casa camponesa no distrito de Chabu, em estilo tradicional.
A maior diferença entre as casas ocidentais e as japonesas é a concepção das divisões. No Japão dividem-se os espaços com shoji ou fusuma, não existindo fechaduras. Shoji é uma divisória de correr, com uma moldura feita de madeira lacada e coberta com janelas de papel de arroz para deixar a luz entrar, ainda que esteja fechada. Existem também as divisórias fusuma, igualmente de correr, feitas de papel muito espesso emoldurado em madeira. Assim, uma divisória shoji ou fusuma é, a um tempo, arquitectura e decoração. As fusuma, por exemplo, são decoradas com pinturas ou caligrafia.
Em primeiro plano, fusuma; em segundo plano, shoji.
Em primeiro plano, fusuma; em segundo plano, shoji.
Cada divisão pode funcionar como sala de estar, sala de jantar ou quarto de dormir. E basta remover as shoji ou fusuma para se obter uma divisão maior. A casa japonesa é, pois, multi-funcional e extremamente versátil na sua concepção. Hoje em dia, a maior parte das casas japonesas apresenta uma mistura de quartos com chão de madeira, tatami ou carpete. No entanto, a tradição japonesa é o revestimento do chão com tatami. Tatami são esteiras feitas de uma camada inferior de palha com cerca de 5 cm de espessura, tendo a superfície coberta com uma folha de junco entrançado. Tatami é fresco no verão e ajuda a manter o calor no inverno. Cada tatami tem cerca de 1,8 metro de comprimento e 90 cm de largura. A área de um tatami chama-se jo e é o jo que se usa para falar do tamanho de uma divisão, ou seja, diz-se “O meu quarto tem 8 jo” ou “O meu quarto tem 8 esteiras (tatami).”
Fusuma à esquerda, shoji à direita e tatami no chão.
Fusuma à esquerda, shoji à direita e tatami no chão.
Um tokonoma é um elemento essencial da casa tradicional japonesa. Consiste numa pequena alcova decorada com um rolo de pintura e pelo menos um ornamento, como um arranjo de flores ou peça esculpida em madeira. No entanto, a pintura ou ornamento, por mais valiosos, não devem atrair o olhar de forma grosseira, quedando mergulhados nessa parte particularmente sombria de uma divisão japonesa. Precede-o um pilar de madeira, por vezes um tronco escassamente trabalhado e preservado na sua original forma sinuosa.
O tokonoma é a alcova à direita.
O tokonoma é a alcova à direita.

Junichiro Tanizaki afirmou: “De cada vez que contemplo um tokonoma, essa obra-prima do requinte, fico maravilhado por constatar até que ponto os japoneses souberam utilizar os jogos de luz e sombra . (…) Numa palavra, sem outro suporte para além de simples madeira e paredes nuas, compôs-se um espaço recatado onde os raios de luz que aí deixamos penetrar produzem, aqui e além, recantos vagamente escurecidos. (…) Experimentamos a sensação de que, nesses locais, o ar encerra uma espessura de silêncio, que uma serenidade eternamente inalterável reina nessa escuridão.”

Tokonoma da Miyokian-taian, sukiya de Sen no Rikyu (o maior mestre do chá de sempre) em Kyoto.
Tokonoma da Miyokian-taian, sukiya de Sen no Rikyu (o maior mestre do chá de sempre) em Kyoto.

As janelas (mado), para além da sua dimensão propriamente utilitária – ventilação, luminosidade, vigilância do jardim exterior – têm uma enorme importância estética. Existem vários tipos de janelas, cada qual adequado a determinadas divisões ou propósitos. A tako-mado, por exemplo, só se encontra na cozinha ou nas instalações sanitárias. Seja na sala de recepção, seja na entrada, a maru-mado, a janela circular, é sobretudo visível no mais belo exemplo da arquitectura tradicional japonesa: a casa de chá – sukiya – essa “estrutura efémera, construída para abrigar um impulso poético.” (Kakuzo Okakura).

Maru-mado da sukiya do Kodaiji.
Maru-mado da sukiya do Kodaiji.
O espírito que preside à construção da sukiya é o wabi, um conceito estético e filosófico polissémico extremamente complexo e de difícil tradução (já o abordei no primeiro post deste blogue). A beleza triste do Outono é wabi. A solidão, a desolação de uma paisagem são wabi. A simplicidade, a sobriedade, a sombra, a recusa de ostentação, é wabi. O sentimento da melancolia é wabi. Assim, o estilo sukiya revela uma profunda afeição pelos materiais naturais e pela assimetria: ”É um domicílio do assimétrico, na medida em que se consagra à adoração do imperfeito, deixando propositadamente algo inacabado para que seja completado pelo jogo da imaginação.” (Kakuzo Okakura).
A chaleira no chão.
A chaleira no chão.
A sukiya evoca a natureza, a sua imprevisibilidade, mas mantendo, ao mesmo tempo, a harmonia e o equilíbrio. Desde logo, o portão é assimétrico tanto no seu design como na sua posição. O acesso à casa (roji) é encurvado; no caso de ser retilíneo, será construído em diagonal, impossibilitando a visão da casa para quem se encontra no portão. Este caminho tem geralmente um aspecto informal, de natureza em bruto e com a presença da pedra. Constitui o primeiro estádio da meditação, a primeira quebra com o mundo profano – a sukiya, na sua arquitectura e no seu propósito, a cerimónia do chá, está intimamente ligada ao budismo zen.
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A sukiya – onde “a brandura da idade cai sobre tudo” (Kauzo Okakura) – não deve impressionar de forma óbvia. É menor do que as mais pequenas casas japonesas (no estilo puro, a sua dimensão é de quatro tatami e meio) e os seus materiais devem sugerir pobreza, embora refinada. Foi elaborada, no entanto, com mais cuidado e originou mais despesas do que uma mansão de abastados. Os carpinteiros das sukiya formam uma classe aparte, distinta e honrada, entre os demais artesãos. As linhas exteriores de uma composição sukiya (uma casa inspirada neste estilo) devem ser rectas e contínuas e as aberturas (geralmente shoji) espaçosas, de modo a unificar o espaço interior e o mundo exterior da natureza em redor. Como protecção contra o sol de verão, penduram-se nessas aberturas estores de tabuinhas de bambu fendidas ou de junco. Também podem pender dos beirais do telhado.
Urakuen-joan. Esta sukiya é um tesouro nacional do Japão.
Urakuen-joan. Esta sukiya é um tesouro nacional do Japão.
Por baixo dos telhados, é por vezes construída uma varanda-corredor (espaços simultaneamente exteriores e interiores) com chão revestido de madeira ou bambu, para reforçar a ligação do edifício com o exterior. A sensação dos pés nus a caminhar sobre o chão de madeira no verão é inesquecível: um contato de uma frescura e, simultaneamente, de uma verdade calorosa como só é possível experimentar na própria natureza.
Corredores-varanda no Shugaku-in, em Kyoto.
Corredores-varanda no Shugaku-in, em Kyoto.
Tudo, as cores suaves, a luz moderada, deve inspirar neutralidade e sossego. No interior, não se avista uma única peça de mobiliário. O estilo sukiya é um hino ao vazio. Apenas ocuparão o espaço os seres humanos, essas figuras condenadas à transitoriedade. Esse fato realça a importância da construção e do material utilizado. “A beleza de uma divisão japonesa, produzida unicamente por um jogo sobre o grau de opacidade da sombra, dispensa quaisquer acessórios. O ocidental, vendo isso, fica surpreendido com este despojamento e julga tratar-se apenas de paredes cinzentas desprovidas de qualquer ornamento, interpretação perfeitamente legítima do seu ponto de vista, mas que prova que ele não conseguiu desvendar o enigma da sombra.(…) Para nós, essa claridade numa parede, ou antes, essa penumbra, vale por todos os ornamentos do mundo e vê-la não nos cansa nunca.” (Junichiro Tanizaki).
A cor sukiya.
A cor sukiya.
O brilho, o excesso, a ordem previsível, o óbvio, a exibição, choca o espírito japonês. Sentem-se desconfortáveis nas casas ocidentais, onde reina uma claridade crua, onde há excesso de mobiliário e decoração e onde as peças de metal foram polidas à exaustão e reluzem furiosamente: “…amamos as cores e o lustro de um objeto maculado pelo uso, pela fuligem ou pelas intempéries, ou que o parece estar, e viver num edifício, ou no meio de utensílios que possuem esta qualidade, apazigua-nos curiosamente o coração e acalma-nos os nervos.” (Junichiro Tanizaki).
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Bibl: Isabel Quelhas de Lima, A Casa Tradicional Japonesa, Ed. Civilização /Kakuzo Okakura, O Livro do Chá, Cotovia /Junichiro Tanizaki, Elogio da Sombra, Relógio de Água. Fotografias: Japan: Zoom in Travel/Introducing Japan, Kodansha/Japão, O Império do Sol Nascente, Círculo de Leitores./Pictorial Encyclopedia of Japanese Culture, Gakken.
Transcrito do original luso em  Japão, Japan.
Okawa Ryuko é o nome japonês de Claudia Ribeiro, que nasceu em Angola e atualmente vive em Portugal. Prepara o doutoramento em Filosofia das Ciências. Desde sempre se interessou pelo Extremo-Oriente. Estudou Chinês na China e japonês em Portugal. Frequentou ainda um curso de verão de Língua Estrangeiras na Universidade de Quioto.

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